terça-feira, 24 de agosto de 2021

Igreja e questão agrária: da solidariedade à Opção pelos Pobres? Por Frei Gilvander

  Igreja e questão agrária: da solidariedade à Opção pelos Pobres? Por Frei Gilvander Moreira[1]



A história da Igreja Católica no Brasil mostra mudança de postura com relação aos camponeses que lutam pela terra. Houve tempos da cumplicidade da Igreja com o latifúndio, os latifundiários, como o revelado pelo bispo de Campanha, no sul de Minas Gerais, em 1950. Passou-se para uma postura de solidariedade sob ingenuidade política que levava os padres e bispos a acreditarem que o problema da miséria e da pobreza seria resolvido com o crescimento econômico do País. E, pouco a pouco, parte da igreja abraçou uma postura política na defesa do campesinato e de denúncia do latifúndio como opressor ao compreender que quanto mais se desenvolvia o capitalismo mais gerava miséria e violência social.

A Constituição de 1946, no seu artigo 141, não alterou o pacto político que garantia os interesses dos grandes proprietários de terra ao restringir as “desapropriações de terra para fins sociais (inclusive, para a reforma agrária) à obrigatoriedade da indenização prévia e em dinheiro ao proprietário” (MARTINS, 1999, p. 72). A Constituição de 1946 prescrevia ainda que a indenização fosse justa. No entanto, a atuação de militantes do Partido Comunista junto aos camponeses no Brasil, precisamente aos arrendatários das Ligas Camponesas e aos posseiros de Trombas, em Goiás, provocou o engajamento da Igreja Católica junto aos camponeses, inicialmente em campanhas de alfabetização, de conscientização e de organização. O pontapé foi dado por um bispo conservador, Dom Inocêncio Engelke, da Diocese de Campanha, no sul de Minas Gerais, que lançou, em 10 de setembro de 1950, em um encontro de 60 párocos, 250 fazendeiros e 270 professoras camponesas, uma Carta Pastoral[2], sobre a iminência da reforma agrária, na qual anunciava, desde o título provocante: “Conosco, sem nós ou contra nós, se fará a reforma rural” (ENGELKE, 1976, p. 43-53). Esse documento do bispo Engelke “é significativo porque expõe, sem procurar disfarçar o contexto ideológico, ideias e preocupações que se manterão no centro das inquietações da igreja nas décadas seguintes” (MARTINS, 1999, p. 100). O documento alerta para os problemas que o êxodo rural estava causando aos fazendeiros, privando-os de mão de obra econômica e abundante. E também assinala o risco de a Igreja perder seus fiéis na cidade com a transformação dos camponeses em operários nas fábricas, onde a atuação dos militantes do Partido Comunista era mais incisiva. A Carta Pastoral do bispo Engelke alertava para o “perigo comunista”: “E os agitadores estão chegando ao campo. Se agirem com inteligência, nem vão ter necessidade de inverter coisa alguma. Bastará que comentem a realidade, que ponham a nu a situação em que vivem ou vegetam os trabalhadores rurais” (ENGELKE, 1950, p. 45). E conclama os proprietários de terra: “Antecipai-vos à revolução” (ENGELKE, 1950, p. 46).

A experiência concreta do crescimento econômico na ampliação do capitalismo no Brasil fez parte da Igreja migrar de uma postura moral para uma postura política com relação à questão agrária, que “é uma entre outras expressões das contradições do capital” (MARTINS, 1983, p. 18). E revelou também que o subdesenvolvimento do País não era falta de desenvolvimento[3] – melhor dizendo, envolvimento -, mas consequência do crescimento econômico dos países capitalistas do norte. Logo se transitou da defesa de desenvolvimento de um capitalismo inacabado para um capitalismo inviável. “As esperanças que a igreja depositou na ação do Estado e no desenvolvimento econômico por ele induzido foram corroídas mais ou menos depressa” (MARTINS, 1989, p. 46).

A história social da terra e da luta pela terra na Amazônia acabou colocando em xeque a ideia da Igreja de que dentro do próprio capitalismo se poderia resolver o problema social da miséria imposta aos camponeses. Em confronto com a realidade dura do capitalismo alastrando-se na Amazônia, parte da Igreja se movimentou de uma postura de solidariedade aos camponeses posseiros para um compromisso com a luta pela terra enquanto questão política, o que inclui Opção pelos Pobres e Opção de Classe. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, José de Souza Martins analisa: “A Amazônia pôs a Igreja diante da evidência de que o capital e o desenvolvimento capitalista maciços, ao contrário do que se supunha, podiam criar problemas sociais de tal gravidade, que se equiparavam ou superavam os gravíssimos problemas da miséria rural do Nordeste. Até então, o conjunto das ideias que norteavam as concepções e ação da Igreja em relação à questão agrária estavam centralizadas no princípio de que o progresso promoveria a equitativa distribuição dos bens, isto é, o próprio capital poderia resolver a questão agrária” (MARTINS, 1999, p. 124-125).

Enfim, já está demonstrado que quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais ocorre concentração de terra e poder, mais devastação socioambiental acontece. Neste contexto, realizar reforma agrária popular e os Povos Originários (Indígenas) e Tradicionais resgatarem todos os seus territórios – missão de todos/as - não é panaceia para a superação de todas as injustiças, mas é condição sine qua non para superarmos o sistema do capital e construirmos uma sociedade do Bem Viver e Conviver com justiça econômica, sustentabilidade ambiental, solidariedade social, responsabilidade geracional e respeito à pluralidade cultural e mística. Que a Igreja resgate cada vez mais sua Opção pelos Pobres; a Igreja-Povo mesmo, não atrelada ao poder. Isso passa necessariamente pela derrubada da tese injusta do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal. 

Referências.

ENGELKE, Dom Inocêncio. Carta Pastoral: “Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural”. In: CNBB. Pastoral da Terra. São Paulo: Edições Paulinas, p. 43-53, 1976.

MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.

______. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.

______. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

24/08/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Pedro Casaldáliga fez opção radical pelos pobres e se guiava pela sabedoria popular. Por Frei Betto

2 - Padre Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes). 24/7/2020: 35 anos

3 - Frei Gilvander: Opção pelos pobres e compromisso com as causas sociais. BH/MG - 30/7/2017

4 - Palavra Ética, na TVC/BH: Samuel Costa/MSTMG. Questão agrária em MG e Reforma Política. 14/11/14

5 - Palavra Ética na TVC/BH: Padre Josimo Tavares e Leonardo Boff. Por Frei Gilvander - 06/6/2020



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] ESTUDOS DA CNBB. Pastoral da Terra, São Paulo: Edições Paulinas, 1976.

[3] Para discussão das categorias ‘subdesenvolvimento’ e ‘desenvolvimento’ sugerimos o livro SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento: Guia para o Conhecimento Como Poder. Petrópolis: Vozes, 2000. Neste livro, Sachs demonstra como ‘desenvolvimento’ se firmou como ideologia que mascara a perversidade do lado avesso do desenvolvimento, justificando a ideologia do desenvolvimento sustentável no campo ambiental como algo hegemônico tentando ancorar-se no que muitos autores chamam de modernização ecológica ou economia verde, mas na realidade é ‘mais do mesmo’: progresso econômico que vai deixando um rastro de devastação socioambiental atrás de si.

 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Perguntas sobre a luta pela terra. Por Frei Gilvander

 Perguntas sobre a luta pela terra. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Fonte da foto: Vídeo “A luta pela terra’, no youtube, canal Projeto #Colabora

Em Contexto de Brasil sob política genocida, ecocida e hidrocida, sendo transformado em escombros, com devastação ambiental absurda, com brutais cortes de direitos trabalhistas, previdenciários e sociais, com hipertrofia do braço armado do Estado e atrofia do braço social do Estado, é necessário compreendermos a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana. Para isso, temos que enfrentar várias questões, tais como: Como classes sociais diferentes, a classe trabalhadora e a classe camponesa, que estão sempre mudando, precisam se emancipar de quê, como e com quais armas/instrumentos? Será um processo longo e viável dentro das atuais relações contraditórias do capital que devasta o trabalho emancipatório e as trabalhadoras e os trabalhadores? “Tomam de nós com uma pá aquilo que conquistamos suadamente com uma colher”, diz Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST[2]. Que condições concretas e objetivas precisam ser criadas, e como criá-las, para se superarem as formas produtivas do capital e se instalarem culturalmente ‘forças produtivas’ segundo os direitos sociais das trabalhadoras e dos trabalhadores da cidade e do campo? Não será a emancipação humana uma utopia sem base realizável? E, quais as mediações (condições específicas, ações concretas, táticas, estratégias etc.) para realizar a emancipação humana, social, política, econômica, cultural, religiosa e ecológica? Qual a força e a centralidade da luta pela terra no processo de transformação social?

Não podemos buscar apenas a emancipação das pessoas no sentido individual que, por exemplo, de sem-terra se tornam Sem Terra, mas urge conquistarmos emancipação humana que inclui, mas supera a emancipação política. Constatar pequenos processos emancipatórios na luta pela terra é menos difícil, conforme demonstra Darlan Faccin Weide: “As lutas sociais do campo trazem modificações na estrutura social e nos próprios camponeses nelas envolvidos, facilitando o processo de emancipação das “situações-limites” em que se encontram, transformando-os em homens ativos e confiantes na força de seus trabalhos e no potencial de suas organizações. Aquilo que parecia um sonho já começa a tornar-se realidade na vida de vários camponeses que vivenciaram esse doloroso processo de emancipação e hoje estão nos assentamentos trabalhando em associações, mutirões e cooperativas” (WEIDE, 1998, p. 47).

Ao pesquisar a luta pela terra, em Minas Gerais, evidenciamos que sob vários aspectos a luta pela terra, nas suas expressões concretas, está contaminada por concepções que teoricamente a deslegitimam. Isso acontece porque os Sem Terra estão imersos em uma sociedade capitalista, e, por isso, são atravessados o tempo todo por concepções que desabonam a luta pela terra.

O século XX testemunhou a consolidação do campesinato brasileiro[3], que não é constituído de camponeses com terra, mas de camponeses essencialmente migrantes, desterrados, sem-terra na luta pela terra. A CPT e o MST surgem e se desenvolvem no interior dos conflitos e das violências na luta pela terra, conforme assevera Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2007): “A luta pela terra desenvolvida pelos camponeses no Brasil é uma luta específica, moderna, característica particular do século XX. Este século passado, foi um século por excelência da formação e consolidação do campesinato brasileiro enquanto classe social. É, por isso, que este camponês não é um camponês que, na terra, entrava o desenvolvimento das forças produtivas impedindo, portanto, o desenvolvimento do capitalismo no campo. Ao contrário, ele praticamente nunca teve acesso à terra, é, pois, um desterrado, um sem terra que luta para conseguir o acesso à terra. É no interior destas contradições que têm surgidos os movimentos sócio-territoriais de luta pela terra, e com ela os conflitos, a violência” (OLIVEIRA, 2007, p. 135).

Assunto candente: a diversidade e a necessidade de evidenciar a complexidade adquirida pelos diferentes movimentos socioterritoriais nas suas diferentes formas de lutas. Importante levar a sério o alerta feito, há 35 anos, por José de Souza Martins, cientista social e doutor em sociologia pela USP, ao dizer: “O campo de análise constitui-se das concepções do público da demanda, mas se constitui também de características da realidade que não são imediatamente visíveis ao próprio público da demanda. Os dados da consciência do público da demanda não abrangem necessariamente nem abertamente toda a verdade de sua situação, pois muitos dos elementos desta última podem permanecer ocultos ao homem comum por força mesmo da alienação da perspectiva desse público à perspectiva do público que exerce algum tipo de hegemonia” (MARTINS, 1986, p. 77-78).

Eis sete questões centrais e fundamentais: 1) Qual a força e a centralidade da luta pela terra, como questão pedagógica, na luta e no trabalho coletivo do MST e da CPT, em tempos temerosos e contemporâneos de mercantilização capitalista? 2) Em que medida as trilhas do trabalho coletivo do MST e da CPT estão, de fato, alimentando pedagogia de emancipação humana dos Movimentos Populares do Campo? 3) Quais são os fundamentos de pedagogia histórico-crítica e emancipatória? 4) Como se constitui a questão da propriedade da terra no Brasil? 5) Em qual esquema conceitual de propriedade coletiva da terra se fundamentam as lutas da CPT e do MST? 6) Como a ideologia da mercantilização, do consumismo e do individualismo solapam o processo de emancipação ao perpassar o universo de vida de homens e mulheres na vida social contemporânea? 7) Qual o papel da luta pela terra na conformação das identidades, das culturas e dos valores?

Na “noite escura” que atravessamos, é imprescindível pensarmos coletivamente as questões apresentadas acima e outras para que possamos alinhar os caminhos que podem nos levar à superação da brutal espiral de violência que se abate sobre a mãe terra, a irmã água, os biomas, os povos do campo e da cidade e toda a biodiversidade. Pensar com “mãos à obra”, na luta coletiva por tudo o que é direito e justo.

Referências.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf

WEIDE, Darlan Faccin. Que fazer pedagógico em acampamentos de Reforma Agrária no Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado em Educação. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1998.

17/08/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) –21/7/21

2 - Povo Indígena Kiriri, de Caldas, sul de MG: um exemplo a ser seguido na luta pela terra – 12/12/2020

3 - Povo Kiriri e a luta indígena pela terra em Minas Gerais - Por CPT, CEDEFES e Povo Kiriri

4 - Luta pela terra e por moradia na pandemia. Frei Gilvander em Entrevista ao Canal SEM EMBARGOS-7/8/20

5 - Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em Goianá, MG - luta pela terra. Frei Gilvander - 26/8/2010.

6 - Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E L. Boff - 29/02/20

7 - MST luta pela terra em Campo do Meio/MG desde 1998: Palavra Ética/TVC/BH c/ frei Gilvander. 17/11/18



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

[3] O campesinato brasileiro é constituído por uma grande diversidade, discutida teoricamente por vários autores, entre os quais ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. 3ª ed. São Paulo: EDUSP, 2007.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Injustiça agrária é raiz da injustiça social. Por Frei Gilvander

 Injustiça agrária é raiz da injustiça social. Por Frei Gilvander Moreira[1]

No início da terceira década do século XXI, o momento dramático que vivenciamos exige de nós uma compreensão acurada do que é e do potencial emancipatório da luta pela terra - transformação para melhor das condições históricas materiais objetivas para além do capital -, não apenas da necessária continuidade da luta pela terra, mas principalmente como deve ser continuada tal luta para reacender esperanças e propostas gestadas por quem faz história com as próprias mãos, pois “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer” (BENJAMIN, 2012, p. 12). Como quem busca decifrar os mistérios do que oprime, humilha, escraviza e mata camponeses e como alguém que cultiva esperança contra toda desesperança, compreendemos a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana, mais do que emancipação política. “A luta pela terra não se pode restringir, apenas e especificamente à luta pelo direito do acesso à terra; deve, isto sim, ser a luta contra quem está por trás da propriedade capitalista da terra, ou seja, o capital” (OLIVEIRA, 2007, p. 67). Ciente de que “não se consegue compreender a fundo um movimento social, se não se vive um pouco de suas razões e sentimentos” (CALDART, 1987, p. 13), compreendemos que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), não sendo movimentos homogêneos, entre dezenas de outros movimentos camponeses, transformam processualmente na luta sem-terra em Sem Terra, novo sujeito social e político que, além de muitos bens necessários à reprodução da vida humana, produz pessoas humanizadas e humanizadoras, “seres humanos que assumem coletivamente a condição de sujeitos de seu próprio destino, social e humano” (CALDART, 2012, p. 23).

Marx termina o prefácio da obra Para a Crítica da Economia Política impondo uma exigência, fazendo analogia da ciência com o inferno, citando Dante Alighieri na Divina Comédia. “Na entrada para a Ciência – como na entrada do Inferno – é preciso impor a exigência: Que aqui se afaste toda a suspeita / Que neste lugar se despreze toda a covardia.)” (MARX, 2005, p. 54). Nesse tom pesquisamos a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana buscando superar suspeitas, dúvidas e covardias, sejam elas de qualquer origem, e para isso nos impomos uma exigência: buscar rigor científico nas razões profundas da luta pela terra como possibilidade de emancipação humana. Óbvio que não qualquer rigor e nem qualquer ciência.

Se algum tipo de reforma agrária, a economicista, já foi feita no Japão, na Europa e nos Estados Unidos, por que no Brasil não foi implementado, ainda, nenhum tipo de reforma agrária e muito menos uma revolução agrária? Como compreender isso? Incomodado, indignado e inconformado diante dessas questões, ciente de que “no problema fundiário está o núcleo das dificuldades para que o País se modernize e se democratize” (MARTINS, 1999, p. 12), pesquisamos a luta pela terra em Minas Gerais, como pedagogia de emancipação humana, na esperança de elaborar algo teórico-prático que sirva como um despertador e gerador de mais luta pela terra e, principalmente, com métodos que apontam no rumo de emancipação humana.

Ciente de que uma sociedade não é apenas “todos nós” ou “toda a população”, mas assume diferentes identidades e características dependendo do espaço (América do Norte ou Latina, Ásia, África, Europa ou Oceania) e do tempo (a sociedade do século I da Era Cristã, do século XVI ou a do século XX, ou ainda a da década de 1960 ou a atual), uma sociedade que gera barbárie e mais barbárie não existe simplesmente pela vontade dos latifundiários. Não basta condenar moralmente o latifúndio como sendo diabólico, satânico e injusto, mas é necessário desarticular as condições materiais objetivas que sustentam uma sociedade latifundiária. Em que medida a luta pela terra tem minado essas condições objetivas?

Enquanto pedagogia de emancipação humana, a luta pela terra está em crise no contexto do agronegócio que campeia com monoculturas brutalmente devastadoras ambientalmente, uso indiscriminado de agrotóxicos, utilização de tecnologias de transnacionais, de última geração e aproveitamento de mão de obra em situação análoga à de escravidão? O agronegócio está em crise, “pois, além de devorar energia e água, concentra terra e renda, provoca graves impactos ambientais, elimina empregos e não resolve a fome no mundo” (LEROY, 2010, p. 293).

Na luta pela terra há luta pela terra que escraviza e há outras formas de lutar pela terra que emancipa? Mais do que lutar pela terra ou para além dela, a CPT e o MST têm como questão fundamental: que tipo de luta pela terra continuar fazendo?

Buscar o chão concreto da mediação é necessário, “partir da terra para atingir o céu” – céu aqui mesmo na terra -, partir das camponesas e dos camponeses, trabalhadoras e trabalhadores, mulheres e homens reais, de carne e osso, conforme afirmam Marx e Engels, em A ideologia alemã: “A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de seu arbítrio” (MARX; ENGELS, 2007, p. 93).

Não podemos esquecer o dinamismo da práxis transformadora da classe trabalhadora e do campesinato como sujeitos históricos. No Brasil com a brutal injustiça social, agrária, ambiental e urbana, é vital usarmos como instrumental de análise da realidade o materialismo histórico-dialético, enquanto ciência filosófica marxista que compreende sociologicamente o que caracterizam a vida da sociedade, sua evolução histórica e a prática social dos indivíduos, no desenvolvimento da humanidade, sempre como uma realidade material permeada de contradições, violência e exploração que moldam o jeito das pessoas pensarem e agirem, enquadrando-as geralmente dentro da ideologia dominante, que é imprescindível para a reprodução das relações sociais de superexploração. Criado por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), o materialismo histórico-dialético é uma perspectiva teórica, metodológica e analítica para compreender a dinâmica e as transformações da história e das sociedades humanas. O termo ‘materialismo’ diz respeito à condição material da existência humana e não tem nada a ver com ateísmo, o termo ‘histórico’ parte do entendimento de que a compreensão da existência humana implica na apreensão de seus condicionantes históricos, e o termo ‘dialético’ tem como pressuposto o movimento da contradição produzida na própria história. Enfim, somente com instrumentais teóricos críticos podemos analisar uma realidade violenta e violentadora e esboçar caminhos emancipatórios. Neste sentido, a injustiça agrária e uma estrutura fundiária pautada no latifúndio é a raiz maior causadora da injustiça social e da brutal desigualdade social.

Referências.

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

______. Sem Terra Com Poesia. Petrópolis: Vozes, 1987.

LEROY, Jean Pierre. Territórios do futuro: educação, meio ambiente e ação coletiva. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll/Lamparina Editora, 2010.

MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.

MARX, Karl. Karl Marx: para a crítica da Economia Política, Do Capital, O Rendimento e suas fontes. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2005.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf

10/08/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Acampamento Pátria Livre/MG: 600 famílias vítimas/crime Vale/Estado/ injustiça agrária/08/1/2019

2 - Despejo de Ocupação em Miravânia, norte de MG: imensa injustiça agrária e social. Vídeo 1. 09/7/2019

3 - Injustiça Agrária em MG: Dr. Afonso Henrique/MP denuncia: Não há Reforma Agrária. 21/01/2013

4 - Rompimento de talude em mina da Itaminas em Sarzedo/MG, 09/8/21: Novas tragédias sendo construídas?

5 - CPT-MG 40 anos - Madalena: "Nossa luta é contra o latifúndio, arma mortífera" - Vídeo 5 - 07/3/2018

6 - Ameaçado por lutar contra o latifúndio, DIM CABRAL, da Cooerco.SD, Uberlândia/MG. Justiça! 24/5/18

7 - Violência do latifúndio cresce no norte de MG/Audiência Pública/ALMG/Toninho do MST. 25/4/2018



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III