terça-feira, 26 de abril de 2022

Governo de MG esteriliza e amordaça Consulta Prévia, Live e Informada dos Povos Tradicionais. Por Frei Gilvander

 Governo de MG esteriliza e amordaça Consulta Prévia, Live e Informada dos Povos Tradicionais. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Dia 20 de abril último (2022), participamos de Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), ocasião em que todas as Entidades e Organizações de Direitos Humanos e Povos e Comunidades Tradicionais repudiaram com veemência e exigiram a revogação e a anulação da Resolução da SEMAD[2]/SEDESE[3], do Governo de Minas Gerais, publicada dia 05 de abril de 2022, no Diário Oficial do estado, porque é inconstitucional, esteriliza, amordaça e mata a Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) dos Povos e Comunidades Tradicionais no estado de Minas Gerais. Viola brutalmente todos os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais. A injusta Resolução fere princípios básicos de participação e da própria Convenção 169 da OIT[4] da ONU[5], que faz parte do ordenamento jurídico do país, desde 2004. A Convenção 169 da OIT “tem por objetivo ser um instrumento de proteção e salvaguarda dos direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, garantindo-lhes, entre outros, o direito à autoatribuição/autodeclaração, o direito à consulta e de participação da tomada de decisões que possam trazer impactos ao seu modo de vida”. A famigerada Resolução faz uma inversão: os Povos e Comunidades Tradicionais são tratados como SOBREPOSTOS às áreas dos projetos. Defende a ideia de que injustiça é os Povos e Comunidades Tradicionais estarem em áreas de interesse da gula sem fim do grande capital. A ilegal Resolução restringe muito o número de comunidades diretamente afetadas, que serão consultadas sob mordaça. Diz que só serão consultadas Comunidades certificadas após Certidão de Autorreconhecimento como Comunidade Tradicional emitida pela CEPCT-MG[6], FUNAI[7] e Fundação Palmares. Sabemos que pouquíssimas Comunidades são certificadas e já há um bom tempo a CEPCT-MG não emite mais certidão. O CEDEFES[8] já inventariou mais de 1.000 Comunidades Quilombolas em Minas Gerais e há milhares de outras Comunidades Tradicionais em processo de autorreconhecimento e/ou em fase de solicitação de certificado. No mais, a autoatribuição em si, já seria suficiente, segundo a Convenção 169 da OIT, garantindo a autonomia emancipatória dos Povos e Comunidades Tradicionais. Por isto, restringir a CPLI às comunidades já certificadas é grave infração por parte da Resolução da SEMAD e SEDESE, que joga para a invisibilidade as comunidades que não se apresentaram oficialmente para as instituições públicas e/ou optaram por não se apresentar ainda, mas que tem seus iguais direitos garantidos e constituídos.

Conforme bem apontado pelas representantes da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE/MG), Dra. Ana Cláudia Alexandre, e do CEDEFES, Dra. Alenice Baeta, durante a Audiência Pública conduzida pelas Deputadas Estaduais Andreia de Jesus e Beatriz Cerqueira, esta Resolução é nitidamente um ato de retrocesso, o que não é admitido pelas cortes internacionais e por todo o corolário de normas internacionais no âmbito dos Direitos Humanos. A “Proibição do Não-Retrocesso” é instituto fulcral e deve ser severamente respeitado, pois configura-se claro interesse por parte do estado de Minas Gerais em reestabelecer o “Regime de Tutela”, já superado por meio das conquistas emancipatórias e de autonomia, sobretudo, no âmbito da alteridade sociocultural e histórica, respeitando de forma incondicional as especificidades culturais e territoriais de cada Povo e Comunidade Tradicional. Tal resolução revela, todavia, por parte do estado de Minas Gerais o seu arraigado Racismo Socioambiental e a Discriminação institucional para com os Povos e Comunidades Tradicionais e desrespeito total aos seus direitos constituídos.

Esta inconstitucional Resolução prevê que, não havendo consenso na Consulta aos Povos e Comunidades Tradicionais, a decisão final será da SEMAD, mesmo que os Povos e Comunidades consultados neguem a aprovação do empreendimento. Isto é, portanto, tentativa insana e irresponsável de retomar a tutela dos Povos Tradicionais, o que é inadmissível! Se a SEMAD com a Câmera de Atividades Minerárias (CMI) do COPAM[9] tem aprovado todos os grandes projetos das grandes mineradoras, é óbvio que é injusto, inconstitucional e violação ao que está prescrito na Convenção 169, deixar a SEMAD decidir. Isto significa, na prática, atropelar e violentar os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, pois, injustamente, a SEMAD tem atuado de forma subserviente aos interesses das grandes empresas.

É imoral, injusto e inconstitucional, conforme definido na Resolução, atribuir ao responsável pela CLPI - entre eles as empresas com seus grandes interesses capitalistas – o poder de definir quem são os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) afetados, qual é a área diretamente afetada (ADA), ditar prazos, estabelecer a metodologia, o plano e conduzir todo o processo regido pela boa-fé das partes envolvidas. Inadmissível isso tudo.

Esta Resolução é injusta também porque impõe prazos que violam o caráter livre e informado da consulta, como por exemplo, o prazo de 45 dias corridos para a elaboração de Protocolos de Consultas e 120 dias para a conclusão da consulta. Isso é desrespeito ao tempo das Comunidades Tradicionais. Para ser Livre a Consulta, quem deve determinar o tempo são as Comunidades Tradicionais; não pode ser uma Consulta acelerada, no ritmo dos interesses do grande capital. Outro absurdo desta Resolução: apregoa que as empresas poderão contratar empresas consultoras para elaborar a Consulta Prévia, Livre e Informada. Isso é o mesmo que colocar raposa para arrumar o galinheiro. Esta injusta Resolução foi publicada após o Ministério Público expedir Recomendação para suspender as Audiências Públicas do Projeto do Bloco 8 da Mineradora SAM, em Grão Mogol e Fruta de Leite, no norte de MG. São ilegais e inconstitucionais os EIA-RIMA[10] da mineração da SAM no norte de MG, sem antes fazer a Consulta Prévia, Livre e Informada. Da mesma forma, o edital de licitação do Rodoanel, rodominério, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Absurdo dos absurdos o Governo de MG continuar insistindo em fazer a licitação do Rodoanel, obra faraônica, autoritária, eleitoreira, hidrocida, ecocida, dragão do Apocalipse, estrada da morte que levará Belo Horizonte e RMBH da grave crise hídrica ao colapso hídrico. Tudo isso sem fazer a Consulta Prévia, Livre e Informada a mais de dez Comunidades Quilombolas e dezenas de outras Comunidades Tradicionais que estão no trajeto do Rodoanel. É injusto e inconstitucional facultar às empresas determinarem qual é a “área diretamente afetada” e restringir a Consulta Livre, Prévia e Informada a esta eventual “área diretamente afetada”. Os efeitos socioambientais dos grandes empreendimentos ocorrem de forma sistêmica e contínua para além do perímetro deliberado e interessadamente compreendido como “área diretamente afetada”.

Esta Resolução é semelhante às resoluções bolsonaristas do desgoverno Federal que tem o objetivo de desmontar todos os instrumentos legais de proteção dos direitos humanos, sociais e ambientais, conquistados com muita luta. Esta covarde Resolução vai contra a legislação, somos contra ela; é um retrocesso às conquistas dos Povos e Comunidades Tradicionais. O Governo de MG, Romeu Zema, está facilitando a todo custo o licenciamento com esta Resolução e com Audiências Públicas ilegais que são farsas públicas. Reiteramos nosso posicionamento: somos contrários a esta resolução violentadora de direitos. Exigimos que esta Resolução seja Cancelada, anulada e jogada na lata de lixo da história.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras mais de 100 Comunidades Tradicionais, organizações da sociedade civil, Movimentos Sociais Populares publicaram Nota denunciando que o Governo de MG, ao expedir a Resolução conjunta da SEMAD/SEDESE, está violando a Convenção 169 da OIT/ONU e entidades exigem revogação/anulação imediata desta resolução. Esta Resolução é mais uma manobra do Governo Zema, a serviço dos grandes empreendimentos, das mineradoras e empresas do setor de energia, grandes empresas da idolatria do mercado, para criar uma aparência de diálogo. A verdade é que ela é violenta e retira os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Precisamos dizer o óbvio aqui: à SEDESE compete fortalecer e ampliar instrumentos de democracia direta e participativa; além de promover ações afirmativas e de enfrentamento à discriminação racial contra a população negra, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. No entanto, injustamente, ao se posicionar como coautora desta inconstitucional Resolução, a SEDESE está traindo sua missão. Como pode a SEDESE e a SEMAD fazerem uma Resolução à revelia da Comissão de Povos e Tradicionais do Governo de MG?

Diante das mudanças climáticas causadas pela imensa devastação ambiental que os capitalistas vêm causando via agronegócio, monoculturas, desmatamentos, garimpo etc., é absurdo dos absurdos uma Resolução fajuta, ilegal, inconstitucional como esta da SEMAD/SEDESE e todas as resoluções, portarias e decretos seja do desgoverno federal bolsonarista ou do desgoverno Zema, que visam apenas “passar a boiada”, acelerando a implantação de grandes projetos do grande capital que têm sido brutalmente devastadores socioambientalmente. Esta resolução põe um manto de legalidade para pavimentar violação brutal dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Mais que claro que o tal “Diálogo Social” usado como diretriz do atual governo ZEMA e suas Secretarias parece que não se aplica mesmo aos Povos e Comunidades Tradicionais, mas sim aos interesses do capital, dos empreendimentos econômicos que geram somente a degradação socioambiental de territórios e a pobreza do nosso povo. Perguntamos: o que teria motivado a elaboração desta Resolução esdrúxula? Queremos explicações e transparência sobre este processo absurdo e cobramos firmes posicionamentos por parte do Ministério Público e da Defensoria Pública em nível estadual e federal a respeito.

Basta de devastação socioambiental! Exigimos respeito aos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais. Que o Ministério Público e o Judiciário anulem esta brutal Resolução. Viva os Povos e Comunidades Tradicionais e Fora todos que insistem em passar o trator em cima dos Povos e Comunidades Tradicionais!

Referências.

http://www.cptmg.org.br/portal/nota-tecnica-da-aba-sobre-a-resolucao-conjunta-sedese-semad-no-01-de-04-04-2022/

http://www.cptmg.org.br/portal/governo-de-mg-viola-convencao-169-da-oit-e-entidades-exigem-revogacao-imediata-da-medida/

 

26/4/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Gilvander: Resolução do Governo de MG violenta direitos dos Povos Tradicionais a Consulta CPLI

2 - “É necessário Resolução do Governo de MG sobre a Consulta aos Povos Tradicionais?” (Dep. Andreia)

3 - Geraizeiros exigem anulação da Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia Livre e Informada

4 - Prof. Matheus REPUDIA Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia/Livre aos Povos Tradicionais

5 - Dra. Laiza: "Resolução da SEMAD e SEDESE é inconstitucional com vícios insanáveis. Deve ser anulada"

6 - Dra. Ana Cláudia: “Resolução do Governo de MG impõe RETROCESSO aos Direitos dos Povos Tradicionais.”

7 - Tatinha Alves, CEPCTs/MG: “Resolução é inconstitucional e facilita a entrada de mineradoras nos ...”

8 - Dra. Alenice, do CEDEFES: “Resolução do Governo de MG: retrocesso q violenta os Povos Tradicionais.”

9 - Dra. Alessandra lista série de ilegalidades da Resolução que viola direitos dos Povos Tradicionais



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Secretaria Estadual de Meio Ambiente e desenvolvimento Sustentável.

[3] Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social.

[4] Organização Internacional do Trabalho.

[5] Organização das Nações Unidas.

[6] Comissão estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.

[7] Fundação Nacional do Índio.

[8] Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – www.cedefes.org.br

[9] Conselho Estadual de Política Ambiental.

[10] Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impactos ao Meio Ambiente.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

“Terra, mãe que nos sustenta”. Por Frei Gilvander

 “Terra, mãe que nos sustenta”. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Cleonice Silva Souza, camponesa Sem Terra, hoje, assentada no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, dia 21/9/2014, transbordando alegria, assim se expressou sobre a terra: “Essa terra aqui estava praticamente morta. Nós ressuscitamos essa terra da Manga do Gustavo, onde acampamos desde 26/8/2006. Antes, era só monocultura do capim. Hoje essa terra está produzindo muito e de acordo com a agroecologia. Já pensou se tantas terras por aí que está sem gente para plantar estivessem nas mãos dos camponeses? Sem a terra a gente não pode sobreviver. Deus deixou a terra para todos nós. Enquanto a gente vai plantando na terra e lidando com ela, a terra fica viva. Se plantar só capim, a terra morre.

A cosmovisão dos/as camponeses/as, expressa acima, decorre da experiência de quem teve a oportunidade de nascer na terra e crescer trabalhando na terra. A forma como os camponeses veem a terra é instrumento de emancipação humana, porque desconstrói a visão do capital que, ao mercantilizar a terra, retira a noção de terra como ‘mãe que nos sustenta’, como ‘criação de Deus para todos’, como ‘algo vivo’ que precisa ser respeitado e cuidado. Essa concepção camponesa afirma a individualização e nega o individualismo, conforme pontua Roberto Damatta, ao discutir individualidade e liminaridade: “Se a individualização é uma experiência universal, destinada a ser culturalmente reconhecida, marcada, enfrentada ou levada em consideração por todas as sociedades humanas, o individualismo é uma sofisticada elaboração ideológica particular ao Ocidente, mas que, não obstante, é projetada em outras sociedades e culturas como um dado universal da experiência humana” (DAMATTA, 2000, p. 9-10).

No mundo tido como moderno, o sistema do capital dissemina o individualismo, que é altamente ideológico no sentido de ofuscar os valores camponeses na sua relação com a terra. A luta pela terra, seja no campo para viver e plantar ou na cidade para morar e plantar, é luta que fortalece o resgate da visão que reconhece o indivíduo, mas em relação respeitosa com a sociedade, não recaindo no individualismo. Na sociedade capitalista há processos que buscam desistoricizar e mitizar relações sociais de mudança, mas como os poetas, os profetas, as profetizas e quem anda na contramão, os camponeses e as camponesas na luta pela terra “em um processo dialético com a sociedade, movimentam suas estruturas, partejando visões de mundo paralelas e conflitantes, desafiadoras dos valores, e nela introduzem uma consciência diferenciada da moralidade e do tempo, essas dimensões que são o pano de fundo da consciência de mudança social” (DAMATTA, 2000, p. 17).

Em uma Roda de Conversa, dia 21/9/2014, durante minha pesquisa de doutorado, perguntamos: “O que aconteceu que fez vocês darem uma guinada na orientação da vida e abraçar a luta pela terra?” Aldemir Silva Pinto, acampado no Acampamento Dom Luciano Mendes, um experiente Sem Terra saiu na frente e disse: “Pelo que sei, após o INCRA[2] fazer o laudo da fazenda Monte Cristo, aqui no município de Salto da Divisa, MG, o MST veio fazer as reuniões de base e o INCRA cadastrou muitas famílias. Ficamos alegres com a chegada do MST propondo a união nossa para ocupar fazenda improdutiva. Eu sabia que não haveria grande repressão, pois a maioria das terras aqui em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, é sem documentos. Eu pensava: após a gente conquistar a primeira fazenda, o povo vai passar a acreditar e vai entrar para a luta”. Entrevemos aqui a noção de liminaridade ou de ‘soleira’, trabalhada por Roberto Damatta. Na luta pela terra e pela moradia acontece um rito de passagem. Passa-se de sem-terra, o camponês expropriado e oprimido, para Sem Terra, o camponês portador de uma nova identidade, um rebelde em relação às convenções sociais impostas pelo sistema do latifúndio e do capital. Passa-se de um sem-teto para um Sem Teto, com moradia, sujeito com condições objetivas de trilhar um caminho de emancipação humana. Na luta pela terra, a/o camponesa/o sem-terra resignada/o pode tornar-se pessoa altiva, alguém de cabeça erguida, sujeito a construir a história pelas mãos. Hélio Amorim, outro Sem Terra hoje assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, descreve o seu rito de passagem rumo a algum tipo de emancipação na narrativa: “Aqui em Salto da Divisa o que existia era coronelismo. A gente não podia nem conversar sobre nosso sofrimento. O entusiasmo do povo que estava se organizando fez criar a coragem. O ex-prefeito José Eduardo aqui de Salto da Divisa, MG, pediu ao INCRA para vir fazer vistoria na fazenda da Fundação Tinô da Cunha. O incentivo desse ex-prefeito ajudou. Jogamos fora o medo. Minha mãe tem 92 anos, mora no Salto da Divisa e sabe que essa terra onde estamos não é deles, é terra devoluta, terra grilada. Quando for medir os 19 mil hectares de terra, herança da dona Inhá Pimenta, sobre essa terra aqui, que agora ocupamos se verá que grande parte é terra grilada”.

São os pequenos gravetos secos que fazem o fogo pegar e cozinhar o feijão na panela”, dizem muitos camponeses. Assim, um incentivo de um lado, um apoio de outro, um conhecimento aqui, outro lá, etc., acabam despertando entusiasmo, que expulsa o medo e a resignação e atrai processualmente a coragem, condição imprescindível para se engajar na luta pela terra e consequentemente em um movimento emancipatório. Pode até começar com um objetivo pequeno: apenas conquistar um pedacinho de terra, mas como os gravetos fazem crescer o fogo, a luta pela terra faz crescer os objetivos e o horizonte do campesinato. Logo após as primeiras conquistas, os Sem Terra descobrem que ‘podemos mais’ e ‘temos direito a mais’.

Na Roda de Conversa, Antoniel Assis de Oliveira, militante do MST, mestre em Educação do Campo, ponderou: “O povo teve coragem, mas desde o início não foi tranquilo. Houve ameaças de morte durante muitos anos. Irmã Geraldinha teve que andar com escolta. A Cidona do MST e o Aldemir também foram ameaçados. A resistência é muito importante para estarmos onde estamos”. Enfim, por tudo isto, para os camponeses e as camponesas “a terra é mãe que nos sustenta”.

Referências.

DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. In: Revista MANA 6(1): 7-29, 2000.

20/4/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Ocupação Irmã Dorothy, Salto da Divisa/MG: 150 famílias, Páscoa e 1 ano de luta: Mais de 100 casas

2 - Povo segue construindo suas casas na Ocupação Irmã Dorothy, do MMT, de Salto da Divisa, MG. Vídeo 2

3 - Luta pela terra incomoda o capital e o Estado - Por frei Gilvander - 18/11/2021

4 - Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) – 21/7/21

5 - Dandara, 7 anos de luta emancipatória por moradia, em Belo Horizonte, MG. 09/04/2016

6 - Dandara, ocupação-comunidade, em Belo Horizonte, MG: 7 anos de emancipação da cruz do aluguel

7 - Domingo de Ramos em Santa Luzia/MG: MLB, a luta pela terra e pela moradia continua. Frei Gilvander

8 - Semeando Espiritualidades 52: Espiritualidade e luta pela terra. Por Frei Gilvander - 06/12/21



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, do Governo Federal. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Especular com a terra e explorar trabalho alheio? Por Frei Gilvander

 Especular com a terra e explorar trabalho alheio? Por Frei Gilvander Moreira[1]


O ser humano tem vocação para se emancipar, no sentido de se transformar sempre para melhor, ou seja, libertar-se de todas as amarras que reduzem seu infinito potencial de envolvimento humano sempre na perspectiva da construção de uma sociedade justa economicamente, socialmente igualitária, politicamente democrática, ecologicamente sustentável, culturalmente plural e religiosamente (macro)ecumênica. Mas o sonho comum de transformação da sociedade tem sido obstacularizado por muitas questões. Partimos do pressuposto de que a luta pela terra e pela moradia, em defesa do território, é fator preponderante no processo de educação popular em lutas emancipatórias dos Movimentos Sociais Populares. A prática social dos Movimentos Sociais Populares que lutam pela terra e pela moradia se põe, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada de uma prática pedagógica. Não é crítica uma pedagogia idealista, fora da histórica e sem ser dialética. Quem advoga a educação como detentora de um poder de transformação social por si só está sendo idealista, ‘bate em ferro frio’ e desconsidera a análise que se faz da realidade pelo método do materialismo histórico-dialético.

Enquanto saber que se tornou (e se torna) cada vez mais necessário: social, política e culturalmente, na segunda década do século XXI, a pedagogia é atualmente um universo em fermentação e ebulição. Franco Cambi já apontava isso, em 1999, ao afirmar: “A pedagogia é um saber em transformação, em crise e em crescimento, atravessado por várias tensões, por desafios novos e novas tarefas, por instâncias de radicalização, de autocrítica, de desmascaramento de algumas – ou de muitas – de suas “engrenagens” ou estruturas” (CAMBI, 1999, p. 641). Nesse contexto de transformação pedagógica afirmamos a luta pela terra e pela moradia, protagonizada pelos sujeitos Sem Terra e Sem Teto, como pedagogia de emancipação humana, isto é, como caminho e jeito de caminhar para a superação do capitalismo e construção de novas relações sociais para além da opressão do capital.

Dependendo da forma como for travada, toda luta pela terra e pela moradia, mesmo que de imediato não obtenha conquistas econômicas, pode se tornar de alguma forma pedagogia de emancipação humana, porque desperta o pensar e o agir autênticos, críticos e criativos e desperta experiência que marca indelevelmente a vida das/os camponesas/es e dos sem-teto que se engajam na luta pela terra e pela moradia. Bem diferente das pedagogias alienadoras da escola tradicional, onde há “lições que falam de Evas e de uvas a homens que às vezes conhecem poucas Evas e nunca comeram uvas. “Eva viu a uva”. Pensamos – diz Paulo Freire - numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores” (FREIRE, 2002, p. 112). Na luta pela terra e pela moradia se criam e se constroem realidades emancipatórias, tais como: arte e cultura popular, e se cria, acima de tudo, pessoas novas comprometidas com a luta em prol da superação das injustiças sociais, econômicas, políticas, ecológicas, etc, injustiças criadas pelo “modo de reprodução sociometabólica do capital que em suas contradições antagônicas insuperáveis é incapaz de atacar essas injustiças” (MÉSZÁROS, 2007, p. 76). A luta pela terra e pela moradia é luta anticapitalista, “é uma luta contra a conversão da terra de trabalho, terra utilizada para trabalhar e produzir, em terra de exploração, terra para especular e explorar o trabalho alheio” (MARTINS, 1983, p. 145). Especular com a terra e explorar trabalho alheio são ações que interessam ao sistema do capital, que sempre ‘desemancipa’ o ser humano. Para se superar a expropriação da terra dos camponeses e a superexploração da classe trabalhadora Mészáros aponta uma única solução. Diz ele: “Só pode haver um único tipo de solução: a eliminação do antagonismo social de nossa reprodução sociometabólica. E só é possível concebê-la, em seus termos próprios, se a transformação abarcar tudo, desde as menores células constitutivas de nossa sociedade às maiores corporações monopolistas transnacionais que continuam a dominar nossa vida” (MÉSZÁROS, 2007, p. 77).

Para se compreender a luta pela terra e pela moradia como pedagogia de emancipação humana, urge considerar que “há múltiplas formas de educação, entre as quais se situa a escolar. Segundo essa tendência, a escola não é a única e nem mesmo a principal forma de educar; há, até mesmo, aqueles que consideram a escola negativa, do ponto de vista educacional, o que foi formulado explicitamente pela proposta de desescolarização, cujo principal mentor foi Ivan Illich” (SAVIANI, 2013, p. 83).

A luta pela terra e pela moradia não nega a importância da educação escolar, tanto é que o campesinato luta aguerridamente pelo fortalecimento da educação do campo, mas não hipertrofia a escola como se só ela tivesse um poder preponderante capaz de transformar socialmente a realidade rumo à superação do capitalismo. Uma pedagogia de emancipação humana da luta pela terra e pela moradia desmascara a mistificação da noção de propriedade privada capitalista da terra que ancora os discursos que legitimam o latifúndio como algo natural e excluem a pertinência da socialização da terra. Ainda nas primeiras décadas do século XIX, a noção de propriedade privada capitalista tornou uma ideologia tão forte que em 1835, o governo da França aprovou as Leis de setembro que, entre outras determinações, previam penas de prisão e altas multas para publicações que se manifestassem contra a propriedade privada capitalista e a ordem estatal vigente[2]. Ainda perdura “a ideologia da propriedade privada, individualista e absoluta, mesmo contra o texto da Constituição de 1988 ainda impera no seio do Estado, ou no seio da elite dominante que dita a interpretação que lhe favorece” (MARÉS, 2003, p. 13). Até quando no Brasil se especulará com a terra e explorará trabalho alheio? Até que aconteça a rebelião massiva dos 99% que são superexplorados pela elite escravocrata. Todos os injustiçados/as precisam participar das lutas coletivas por direitos, o que nos levará à libertação. Para isso é preciso priorizar o comunitário e participar da Grande Marcha da Liberdade. “Se isso significa deixar o trabalho e a escola: estejam lá. Ou ascendemos juntos ou caímos juntos”, bradava Martin Luther King, antes de ser martirizado na luta pela superação do racismo e do capitalismo.

 

Referências.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

 

05/4/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4

2 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3

3 - Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1

4 - Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2

5 - "Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode mais ser prefeito de Betim/MG": Zélia

6 - “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)

7 - Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG, só saímos mortos”

8 - Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para sempre! Cadê a função social?”



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. nota n. 285, MARX; ENGELS, 2007: 564.